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ATRÁS DO ARAGUAIA 4
(cabeças cortadas)
O conflito entre
a lei e os pregadores, constante na Amazônia nas últimas décadas, chegou ao
paroxismo naquela época. O padre Humberto, francês da Bretanha, franzino e
sólido ao mesmo tempo, instalado numa igrejinha da Cidade Nova, praticamente um
bairro de Marabá, com 19 mil habitantes, dizia, sem meias-palavras, que a
população civil tinha sido a principal vítima da guerra que se desenrolou ali.
Naquele momento
já sabíamos que em 1070, antes da Transamazônica, quando as únicas estradas de
penetração eram a Belém-Brasília e a PA-70, o Exército vinha realizando
manobras na região. A revista O Cruzeiro falava na Operação Carajás, na qual
quatro mil homens do Exército vasculharam uma área de 100 quilômetros quadrados
e o general José Nogueira Paes, comandante militar da Amazônia, fazia apelos
para a integração do povo com as Forças Armadae "num verdadeiro
compromisso com a segurança nacional". Essa frase seria suficiente para
dar a entender que uma ameaça existia, ou poderia existir, como de fato
ocorreu.. E houve uma intervenção do Exército.
A história dessa
traumática ação militar ainda corria de boca a boca em toda a área. Era comum ouvir falar nas sessões de tortura promovidas
pelo major Curió - que circulava com roupas civis -- , pegando
preferencialmente posseiros suspeitos de ajudar os guerrilheiros. Padre
Humberto, que na época morava num lugar chamado Palestina, contou, por exemplo,
que, com a chegada do Exército um farmacêutico e um médico da cidade
desapareceram e só mais tarde veio a saber que eram ligados a guerrilheiros e
se transferiram para a serra das Andorinhas.
Quanto mais a
gente deixava Marabá para trás, mais as histórias apareciam. Estacionamos dois
dias na aldeia dos suruis, no município de São Domingos das Latas, a 60
quilômetros da Transamazônica. Era formado por treze casas de palha onde viviam
64 índios. Tinham uma reserva de 3 mil hectares, conheciam a área como a palma
da mão. Por isso, quatro deles ajudaram o Exército como guias ou batedores, recrutados pelo general Antônio
Bandeira, comandante de uma das três campanhas das Forças Armadas.
Muitos ficaram
com seqüelas dos combates travados na mata, que incluíam a degola dos
guerrilheiros mortos - acordavam no meio da noite, gritando. Quando falavam
disso, ficavam excitados e nervosos como gato de padaria em dia de faxina. Na
calada da noite, no centro da maloca iluminada por um lampião, Massu, o mais
articulado deles, contou os últimos lances da guerrilha, inclusive a morte do
lendário Osvaldo Orlando da Costa, em fevereiro de l974.
-- Rapaz, você conhece a mata, né?
-- Sabe, sim.
-- Você sabe onde está terrorista?
-- Sabe sim.
-- Então os soldado pediu licença da
Funai. Maravi e Arecachu, os dois primeiro entrou na mata - veio um Toyota
buscar. Nós procurava a pinicada, via barraquinha dele embaixo do cipozal - a
gente achava muita coisa... remédio, farinha... no buraco do cupim --, mas
terrorista se escondeu mesmo.
Nós esperava na mata... esperava...
esperava... Tinha muito avião... hericópire voava baixinho. Demorou, até que
quebrou o pau. Terrorista mandou uma brasa: "tá-tá!". Soldado também
mandou uma brasa: "trrrrrrrrrrrrr!".
Esse cara (aponta para o índio Arecachu)
ajudou muito carregando morto dentro do hericópire. Cortava a cabeça e lavava
pro São Raimundo para tirar o retrato. Era homem, mulher, tudo misturado.
De primeiro morreu um bocado de soldado.
Soldado foi tomar água, a Dina estava esperando lá: "paaaaá!". Agora chegou um cara lá de Brasília, rapaz!
Como era o nome dele? ... Doutor Antônio (general Antônio Bandeira).
Ele trouxe muita espingarda pra nós,
cartucho pra gente caçar. Soldado primeiro pegou pessoal que dava coisas
pra terrorista. Foi tudo preso, tudinho. Bateram, bateram -
soldado perguntava pra ele assim:
-- O que tu deu pra ele?...
-- Cartucho.
-- E mais?
-- Farinha.
-- E mais?
-- Sal.
-- Aonde tem quem ajuda terrorista?
-- Tem muito aí.
-- Me qual ele é.
-- Pernambuco.
E fomo atrás do Pernambuco. Levemo ele pro
São Raimundo. Amarremo de cabeça pra baixo numa árvore - aí o cara ficava à
altura. Soldado falou e levou logo a peixeira na testa dele - "tec!",
só estrelava.
-- Conta aí, nego velho, o que tu deu?
-- Ele convidou pra mim fazer paiol na
mata pra ele, paiol de farinha.
-- Tu tá mentindo pra mim, rapaz!
-- Eu tava com medo dele me matar!
-- E matava nada! Porque vocês que dá,
rapaz!
Uma vez terrorista saiu da mata. Pegaram
soldado lá no entroncamento de São Domingos. Terrorista pegou a arma dele.
Os soldado entravam na mata de seis com a
gente no mato. Ele avisava pra nós:
-- É escutar barulho, você passa pra trás
de mim.
Agora soldado na hora que vê barulho vai
andando mesmo: "taaaaaaaaaaaaá!". Quebrou tudinho cabeça, saiu
tudinho o miolo: "paaaaaaaaaaá!". A gente escutava aqui na aldeia o
barulho: "tá-tátátá-tátátátátá-tátátá-trrrrrrrrr!"
Antes era difícil de achar. Agora, não:
fácil. Soldado falou:
-- Tem que acabar com esse terrorista: ele
quer tomar o Brasil, esse terrorista não presta.
Roupa de terrorista já parecia um saco
velho. Primeiro camisa nova, depois camisa velha. Gente branca, morena,
preta... Amarelo tinha também. Tem ferida, tudinho também aqui na cara, tudinho
cheio de caroço. Não fogo, não tem fósforo, acabou tudo. Nós chegava no
acampamento dele no cipozal e soldado ia mexer nas coisas, não deixa nós.
-- Rapaz, você não pega nesse bicho aí!
Ele abriu, rapaz! Coisou, queimou tudo na cara do soldado - o pólvora. Ele fez
o negócio todo feito pra morrer qualquer soldado. Mas soldado já tava com muita
força
A Dina - diz que ela era baiana -- , foi
pegada lá em Marabá: ia atravessar pro São Félix, mataram ela. O Osvaldão
morreu sozinho - foi ali: nós vimos lá no São Raimundo (uma das pequenas bases
de apoio do Exército dentro do mato), morto, pendurado pelo corda no
hericópire, por corda. Rapaz, ele era fogo mesmo - muito preto. Roupa dele não
presta não, tudo rasgado.
Enterraram todos no São Raimundo, mas já
vieram buscsr os ossos.
Também era
conhecido o depoimento de Genoíno Neto na Justiça Militar, guerrilheiro preso
na
Região logo no
começo das operações do Exército, assim como uma matéria de meia página no Estado de S. Paulo, de 24 de setembro de
l972. Noticiava a presença de cinco mil homens das Forças Armadas na região,
sob o comando dos generais Viana Moog e Antônio Bandeira, com o título Em Xambioá, a guerra é contra guerrilheiros
e o atraso, matéria que pegou a censura de calças curtas.
Genoíno contou
que a maioria dos guerrilheiros se instalou na região como S fossem simples
lavradores. Declarou que o Exército chegou em abril de l969, quando os
guerrilheiros começaram a se organizar em quatro destacamentos, cada um com
cerca de 20 homens e mulheres. Genoíno foi para o Destacamento B, no Vale do
rio Gameleira, chefiado por Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, mineiro de
Passa Quatro.com cursos de guerrilha na China, um dos primeiros a ir para a
região. Em Marabá e nos municípios vizinhos, comentava-se que Osvaldão era um
negro de dois metros de altura que vivia do comércio de peles. Teria sido atleta
do Botafogo do Rio. E que em São Domingos do Araguaia não havia sapato que
servisse em seus pés enormes. Hoje sabemos que o herói maior do Araguaia sabia
onde pisava. Estudou Geologia na Tchecoslováquia e foi campeão carioca de boxe
pelo Botafogo.
De qualquer
forma, segundo o coronel Cid Zenóbio de Aguiar, comandante do 52º Batalhão de
Infantaria, sediado em Marabá, o episódio foi dado como encerrado no dia 31 de
janeiro de 1975. Mesmo assim, os
episódios protagonizados pelas Forças Guerrilheiras do Araguaia continuava a
produzir seus efeitos. Quando o 52º Batalhão se instalou em Marabá, o quartel
começou a ser procurado por colonos, peões, pessoas que se diziam
proprietários, todos tentando resolver seus problemas, quase sempre de terra,
de miséria o doença. O Exército passou a ser uma espécie de última instância
para assuntos que, na verdade, eram da alçada do Iterpa (Instituto de Terras do
Pará), da polícia, do Poder Judiciário.
Apesar de não
querer entrar em problemas que não eram
especificamente de sua competência, na
Visão do
general o Exército estava lá para
"segurar as pontas", como se diz. Em outras palavrad, para, com a sua
simples presença, ajudar na manutenção da ordem em uma situação conturbada que
não se podia medir segundo os padrões do sul do país. O próprio general Cid
Zenóbio, cearense de Sobral, mas que nunca havia servido na região, disse que,
ao assumir o comando do 52º Batalhão,
surpreendeu-se com uma fila imensa de pessoas que diariamente procuravam o
quartel solicitando assistência de todo tipo.
-- No fundo, o
que estamos fazendo aqui é ensinar esses caboclos a comer com talher.
Na verdade, o
Exército quebrou qualquer etiqueta. Eu já conseguira, em quase um mês na área,
um conjunto de depoimentos suficientes para comprovar que a Convenção dea
Genebra virou letra morta naquilo que o ex-ministro Jarbas Passarinho chamaria
de "guerra suja dos dois lados". Ok, mas que o Exército caprichou na
sua parte, caprichou. De qualquer forma, eu só juntaria os cacos dessa história
ao encontrar seu personagem-chave, José Genoino Neto, em São Paulo.
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