quarta-feira, 12 de novembro de 2014




De Belém - palmériodoria@gmail.com
ATRÁS DO ARAGUAIA 4
(cabeças cortadas)

O conflito entre a lei e os pregadores, constante na Amazônia nas últimas décadas, chegou ao paroxismo naquela época. O padre Humberto, francês da Bretanha, franzino e sólido ao mesmo tempo, instalado numa igrejinha da Cidade Nova, praticamente um bairro de Marabá, com 19 mil habitantes, dizia, sem meias-palavras, que a população civil tinha sido a principal vítima da guerra que se desenrolou ali.
Naquele momento já sabíamos que em 1070, antes da Transamazônica, quando as únicas estradas de penetração eram a Belém-Brasília e a PA-70, o Exército vinha realizando manobras na região. A revista O Cruzeiro falava na Operação Carajás, na qual quatro mil homens do Exército vasculharam uma área de 100 quilômetros quadrados e o general José Nogueira Paes, comandante militar da Amazônia, fazia apelos para a integração do povo com as Forças Armadae "num verdadeiro compromisso com a segurança nacional". Essa frase seria suficiente para dar a entender que uma ameaça existia, ou poderia existir, como de fato ocorreu.. E houve uma intervenção do Exército.
A história dessa traumática ação militar ainda corria de boca a boca em toda a área.  Era comum ouvir falar nas sessões de tortura promovidas pelo major Curió - que circulava com roupas civis -- , pegando preferencialmente posseiros suspeitos de ajudar os guerrilheiros. Padre Humberto, que na época morava num lugar chamado Palestina, contou, por exemplo, que, com a chegada do Exército um farmacêutico e um médico da cidade desapareceram e só mais tarde veio a saber que eram ligados a guerrilheiros e se transferiram para a serra das Andorinhas.
Quanto mais a gente deixava Marabá para trás, mais as histórias apareciam. Estacionamos dois dias na aldeia dos suruis, no município de São Domingos das Latas, a 60 quilômetros da Transamazônica. Era formado por treze casas de palha onde viviam 64 índios. Tinham uma reserva de 3 mil hectares, conheciam a área como a palma da mão. Por isso, quatro deles ajudaram o Exército como guias ou  batedores, recrutados pelo general Antônio Bandeira, comandante de uma das três campanhas das Forças Armadas.
Muitos ficaram com seqüelas dos combates travados na mata, que incluíam a degola dos guerrilheiros mortos - acordavam no meio da noite, gritando. Quando falavam disso, ficavam excitados e nervosos como gato de padaria em dia de faxina. Na calada da noite, no centro da maloca iluminada por um lampião, Massu, o mais articulado deles, contou os últimos lances da guerrilha, inclusive a morte do lendário Osvaldo Orlando da Costa, em fevereiro de l974.

-- Rapaz, você conhece a mata, né?
-- Sabe, sim.
-- Você sabe onde está terrorista?
-- Sabe sim.
-- Então os soldado pediu licença da Funai. Maravi e Arecachu, os dois primeiro entrou na mata - veio um Toyota buscar. Nós procurava a pinicada, via barraquinha dele embaixo do cipozal - a gente achava muita coisa... remédio, farinha... no buraco do cupim --, mas terrorista se escondeu mesmo.
Nós esperava na mata... esperava... esperava... Tinha muito avião... hericópire voava baixinho. Demorou, até que quebrou o pau. Terrorista mandou uma brasa: "tá-tá!". Soldado também mandou uma brasa: "trrrrrrrrrrrrr!".
Esse cara (aponta para o índio Arecachu) ajudou muito carregando morto dentro do hericópire. Cortava a cabeça e lavava pro São Raimundo para tirar o retrato. Era homem, mulher, tudo misturado.
De primeiro morreu um bocado de soldado. Soldado foi tomar água, a Dina estava esperando lá: "paaaaá!".  Agora chegou um cara lá de Brasília, rapaz! Como era o nome dele? ... Doutor Antônio (general Antônio Bandeira).
Ele trouxe muita espingarda pra nós, cartucho pra gente caçar. Soldado primeiro pegou pessoal que dava coisas pra  terrorista. Foi  tudo preso, tudinho. Bateram, bateram - soldado perguntava pra ele assim:
-- O que tu deu pra ele?...
-- Cartucho.
-- E mais?
-- Farinha.
-- E mais?
-- Sal.
-- Aonde tem quem ajuda terrorista?
-- Tem muito aí.
-- Me qual ele é.
-- Pernambuco.
E fomo atrás do Pernambuco. Levemo ele pro São Raimundo. Amarremo de cabeça pra baixo numa árvore - aí o cara ficava à altura. Soldado falou e levou logo a peixeira na testa dele - "tec!", só estrelava.
-- Conta aí, nego velho, o que  tu deu?
-- Ele convidou pra mim fazer paiol na mata pra ele, paiol de farinha.
-- Tu tá mentindo pra mim, rapaz!
-- Eu tava com medo dele me matar!
-- E matava nada! Porque vocês que dá, rapaz!
Uma vez terrorista saiu da mata. Pegaram soldado lá no entroncamento de São Domingos. Terrorista pegou a arma dele.
Os soldado entravam na mata de seis com a gente no mato. Ele avisava pra nós:
-- É escutar barulho, você passa pra trás de mim.
Agora soldado na hora que vê barulho vai andando mesmo: "taaaaaaaaaaaaá!". Quebrou tudinho cabeça, saiu tudinho o miolo: "paaaaaaaaaaá!". A gente escutava aqui na aldeia o barulho: "tá-tátátá-tátátátátá-tátátá-trrrrrrrrr!"
Antes era difícil de achar. Agora, não: fácil. Soldado falou:
-- Tem que acabar com esse terrorista: ele quer tomar o Brasil, esse terrorista não presta.
Roupa de terrorista já parecia um saco velho. Primeiro camisa nova, depois camisa velha. Gente branca, morena, preta... Amarelo tinha também. Tem ferida, tudinho também aqui na cara, tudinho cheio de caroço. Não fogo, não tem fósforo, acabou tudo. Nós chegava no acampamento dele no cipozal e soldado ia mexer nas coisas, não deixa nós.
-- Rapaz, você não pega nesse bicho aí!
Ele abriu, rapaz! Coisou, queimou  tudo na cara do soldado - o pólvora. Ele fez o negócio todo feito pra morrer qualquer soldado. Mas soldado já tava com muita força
A Dina - diz que ela era baiana -- , foi pegada lá em Marabá: ia atravessar pro São Félix, mataram ela. O Osvaldão morreu sozinho - foi ali: nós vimos lá no São Raimundo (uma das pequenas bases de apoio do Exército dentro do mato), morto, pendurado pelo corda no hericópire, por corda. Rapaz, ele era fogo mesmo - muito preto. Roupa dele não presta não, tudo rasgado.
Enterraram todos no São Raimundo, mas já vieram buscsr os ossos.
Também era conhecido o depoimento de Genoíno Neto na Justiça Militar, guerrilheiro preso na
Região logo no começo das operações do Exército, assim como uma matéria de meia página no Estado de S. Paulo, de 24 de setembro de l972. Noticiava a presença de cinco mil homens das Forças Armadas na região, sob o comando dos generais Viana Moog e Antônio Bandeira, com o título Em Xambioá, a guerra é contra guerrilheiros e o atraso, matéria que pegou a censura de calças curtas.
Genoíno contou que a maioria dos guerrilheiros se instalou na região como S fossem simples lavradores. Declarou que o Exército chegou em abril de l969, quando os guerrilheiros começaram a se organizar em quatro destacamentos, cada um com cerca de 20 homens e mulheres. Genoíno foi para o Destacamento B, no Vale do rio Gameleira, chefiado por Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, mineiro de Passa Quatro.com cursos de guerrilha na China, um dos primeiros a ir para a região. Em Marabá e nos municípios vizinhos, comentava-se que Osvaldão era um negro de dois metros de altura que vivia do comércio de peles. Teria sido atleta do Botafogo do Rio. E que em São Domingos do Araguaia não havia sapato que servisse em seus pés enormes. Hoje sabemos que o herói maior do Araguaia sabia onde pisava. Estudou Geologia na Tchecoslováquia e foi campeão carioca de boxe pelo Botafogo.
De qualquer forma, segundo o coronel Cid Zenóbio de Aguiar, comandante do 52º Batalhão de Infantaria, sediado em Marabá, o episódio foi dado como encerrado no dia 31 de janeiro de 1975. Mesmo assim,  os episódios protagonizados pelas Forças Guerrilheiras do Araguaia continuava a produzir seus efeitos. Quando o 52º Batalhão se instalou em Marabá, o quartel começou a ser procurado por colonos, peões, pessoas que se diziam proprietários, todos tentando resolver seus problemas, quase sempre de terra, de miséria o doença. O Exército passou a ser uma espécie de última instância para assuntos que, na verdade, eram da alçada do Iterpa (Instituto de Terras do Pará), da polícia, do Poder Judiciário.
Apesar de não querer entrar em problemas  que não eram especificamente de sua competência, na
Visão do general  o Exército estava lá para "segurar as pontas", como se diz. Em outras palavrad, para, com a sua simples presença, ajudar na manutenção da ordem em uma situação conturbada que não se podia medir segundo os padrões do sul do país. O próprio general Cid Zenóbio, cearense de Sobral, mas que nunca havia servido na região, disse que, ao assumir  o comando do 52º Batalhão, surpreendeu-se com uma fila imensa de pessoas que diariamente procuravam o quartel solicitando assistência de todo tipo.
-- No fundo, o que estamos fazendo aqui é ensinar esses caboclos a comer com talher.
Na verdade, o Exército quebrou qualquer etiqueta. Eu já conseguira, em quase um mês na área, um conjunto de depoimentos suficientes para comprovar que a Convenção dea Genebra virou letra morta naquilo que o ex-ministro Jarbas Passarinho chamaria de "guerra suja dos dois lados". Ok, mas que o Exército caprichou na sua parte, caprichou. De qualquer forma, eu só juntaria os cacos dessa história ao encontrar seu personagem-chave, José Genoino Neto, em São Paulo.


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